Escolhi o album deste mês por razões pessoais... Mingus é meu compositor favorito do pós-bop (com todo respeito a Monk e Gillespie)... e este, por sua vez, é meu disco preferido de Mingus. Além disso, a escolha é oportuna por permitir a abordagem do papel do Baixo no Jazz, instrumento que Mingus retirou do fundo do palco para transformar em protagonista. Além disso, dá ensejo a abordar, ainda que preliminarmente, já que o tema exigirá certamente inúmeros posts por sua profundidade, essa delicada fase pela qual o Jazz passava nas décadas de 50 e 60.
Além destas razões, também me parece prescisa a escolha por permitir ao leitor fazer uma comparação entre o estilo de composição dos clássicos e modernistas, já que unindo em uma ponta Duke Ellington, e em outra Mingus, Dizzy Gillespie e Thelonious Monk (dos quais também falarei em breve) estamos diante dos maiores compositores do Jazz Pré e Pós-Bop, respectivamente.
Mingus é de certa forma um elo entre as duas gerações do Jazz, sendo possível ouvir em sua música ecos de Duke Ellington, bem como prenúncios dos tempos futuros de Ornette Coleman; um link entre a música orquestrada e dos pequenos conjuntos bepbopers; a união perfeita do romântico e do moderno; enfim, um músico que soube como ninguém conciliar as contradições existentes a seu redor.
Mas antes de falar de Mingus com minhas próprias palavras, trago à tona as palavras do próprio artista, registradas em sua instigante autobiografia... A quem se interessar, desde já indico o livro do músico intitulado em inglês "Beneath the Underdog", por aqui traduzido pela editora Jorge Zahar Editor sob o título "Saindo da Sarjeta", e pela editora Assirio e Alvim como "Abaixo de Cão"... (Embora não conheça a versão da Assirio e Alvim, particularmente indicaria o original a quem puder ler em inglês, já que não fiquei totalmente satisfeito com a tradução dada ao texto pela Jorge Zahar).
O livro inicia-se de forma surpreendente, introduzindo um aspecto no mínimo curioso que é explorado em toda obra. No primeiro parágrafo, faz o músico a seguinte revelação, ou auto-descrição, que por si só demonstra a complexidade de sua mente e pontos de vista:
"Em outras palavras, eu sou três. Um homem fica sempre no meio, despreocupado, sem se emocionar, observando, esperando que lhe permitam expressar o que ele vê para os outros dois. O segundo homem é como um animal assutado que ataca por medo de seratacada. E, então, há uma pessoa gentil e superamorosa que acolhe as pessoas no templo mais sagrado do seu ser, aceita insultos, confia, assina contratos sem ler, cai na conversa dos outros e acaba trabalhando barato ou de graça, e quando percebe o que lhe fizeram tem vontade de matar e destruir tudo ao seu redor, inclusive a si mesma por ter sido tão estúpida. Mas não consegue, e volta para dentro de si mesma."
Este "dilema de uma tripla personalidade" é retomado em toda a autobiografia, criando Mingus cenas no mínimo curiosas, como a que suscede o pequeno epílogo. Trata-se de uma curiosa narração em terceira pessoa de cena onde o músico, ainda criança, teria sofrido um acidente em casa provocando um corte na cabeça. Durante toda a passagem, não se sabe quem é o narrador, que observa a cena a todo tempo chamando Mingus ora de "meu garoto", ora de "o meu baby", "Ming", "Charlie"... Na sequência, levado ao hospital, após uma angustiante descrição dos procedimentos médicos, assim a cena é concluída pelo narrador: "Mesmo com tanta fé nesse cara chamado Deus, Baby não reagia. Decidi voltar pra dentro dele e assumir até que ele pudesse se recompor. Ninguém pareceu notar quando subi na mesa branca onde Baby estava deitado e me materializei dentro do grande buraco sobre seu olho esquerdo. Só para consolar todo mundo, respirei fundo e exalei, e Baby soltou seu primeiro grito desde o começo daquela manhã, quando Grace fizera cócegas no seu estômago até doer. O doutor colheu os louros e o crédito: '- Não se preocupem, em uma semana ou um pouco mais ele vai estar novo em folha. perdeu muito sangue e vamos precisar de raios X, é claro, pode haver uma fratura ou concussão. Voltem amanhã de manhã'. Comecei a sair de novo quando a família saiu, mas Baby me reteve e se agarrou à vida, por isso fiquei com ele e tenho etado com ele desde então".
O mistério sobre a passagem só chega ao fim em momento já avançado do livro, quando é possível descobrir que na verdade o narrador desta pequena passagem é o próprio Mingus...
Bom... mas não resolvi citar por acaso este trecho da biografia do compositor, assim como o breve trecho do epílogo em que o mesmo descreve sua "tripla personalidade". Ouvindo já a primeira faixa de Pithecanthropus Erectose poderá o leitor perceber que a multiplicidade de personalidades descrita pelo músico fica, evidentemente, refletida também em suas composições. É esta complexidade e sofisticação do pensamento musical de Mingus que permitem uma alternância de sentimentos em suas canções, muitas vezes nos fazendo acreditar que uma mesma obra não foi inteiramente escrita por uma só pessoa, tamanha a amplitude dos movimentos sofridos pelas composições, combinando trechos de mais pura harmonia e consonância com passagens absolutamente caóticas e exploxivas, embora sempre cuidadosamente arquitetadas.
E assim prossegue toda sua biografia... com três narradores aparentes, distantes uns dos demais, às vezes com idéias muito distintas, embora sejam sempre o mesmo Charles Mingus... Bom, e já que toquei no livro, faço um alerta para aqueles buscam no mesmo uma descrição da vida musical do artista (como eu o fiz), sendo certo que não o vão encontrar, prendendo-se a narrativa muito mais aos aspectos da vida pessoal do escritor.
Enquanto instrumentista, desde cedo teve Mingus seu talento reconhecido, vindo a tocar com os mais importantes nomes da história do Jazz: de Louis Armstrong e Duke Ellington a Charlie Parker e Dizzy Gillespie, passando por Bud Powell, Max Roach, Art Tatum, Stan Getz, etc, sendo, certamente, o mais influente baixista da história do Jazz.
O baixo foi um instrumento que, tardiamente, somente veio a se firmar nas bandas de Jazz a partir dos anos 30, embora já fosse eventualmente usado desde a primeira década do século, desempenhando um papel que antes cabia, em geral, à Tuba, marcando o rítimo, guiando as mudanças de acordes e compondo a harmonia, além de, em certos momentos, assumir o papel de solista. Muitos foram os grandes baixistas na história do Jazz, sendo justo citar aqui os nomes de Ray Brown, Stanley Clarke, Paul Chambers, Ron Carter, e já na fase elétrica Jaco Pastorius, entre outros...
No Jazz o baixo se encontrou no pizzicato, ou seja, o modo dedilhado de tocar, tendo sido deixado de lado o arco, o que acabou se irradiando para toda forma de música popular e culminando na criação do baixo elétrico. Conta a lenda que em 1911 o baixista da célebre Original Creole Jazz Band, Bill Johnson, teria quebrado seu arco, o que o forçou a tocar em pizzicato, extraindo um som que se encaixaria perfeitamente ao estilo percurssivo do início dos tempos, herdado diretamente do ragtime. A partir daí, o Baixo teria cada vez mais espaço no Jazz.
Além de virtuoso baixista, Mingus demonstrava talento também sentado ao piano, para o qual foi despertado desde jovem enquanto frequentador da casa de um de seus grandes "mentores" musicais, o pianista Art Tatum, o que ampliaria sua visão harmônica e sua habilidade como arranjador, possibilitando a um baixista, fato incomum de se ver no Jazz, receber tamanho destaque enquanto compositor. A afinidade do músico com as teclas o levou, inclusive, a gravar um disco solo como pianista, que recebeu o título auto-explicativo Mingus Plays Piano.
Instrumentista brilhante, compositor da mais refinada criatividade e originalidade, Mingus possuía as características perfeitas para liderar, ao lado de outros progressitas, um dos mais efervescentes movimentos já vistos no Jazz, tão difícil de ser traduzido em palavras quanto o foi, para seus contemporâneos, compreendê-lo.
Impulsionada por um verdadeiro mosáico de conturbados fatos históricos que contribuíam para deixar a música norteamericana igualmente complexa, surgia naqueles anos uma corrente vanguardista que iria propor uma nova linguagem ao Jazz, revolucionando importantes pilares do tradicionalismo, ao mesmo tempo em que acentuando e resgatando aspectos essenciais da música negra dos primeiros anos do New Orleans.
Em resumo, a década de 50 havia sido uma época de convivio de inúmeras tendências e estilos: Bepbop, Pós-bop, revivals de New Orleans e Dixieland, Cool, Modal, os primórdios do Free, além do Rock, o que, reunido, daria origem nos anos 60 a um movimento avant-garde que iria propor, além de novas idéias ao Jazz, uma maior conscientização sobre seu papel. Mingus seria um de seus maiores expoentes, e um dos artistas que de forma mais sóbrea saberia expressar os ideais daquela corrente.
A principal característica do movimento de vanguarda do Jazz, se é que é possível definir um ponto de apoio comum desta tão diversificada corrente, pode ser resumida em sua incessante inventividade e tentativa de expandir os limites do Jazz, muito embora sempre recordando as raízes negras, ficando evidente em Mingus, por exemplo, a base Blues que o artista carregava consigo mesmo nos momentos em que sua música mais se distancia das concepções tradicionais do Jazz. Entre seus grandes expoentes estariam - além do próprio Charles Mingus -, Sun Ra, Cecil Taylor, Archie Shepp, John Coltrane, Ornette Coleman, Don Cherry.
Se por um lado o movimento vanguardista ganhava corpo de forma abstrata, enquanto onda de criatividade que suscedia o trabalho de inovadores dos anos anteriores, como Parker e Gillespie e Monk, quase como um grito de protesto musical que ecoou por todo os Estados Unidos, teria existência concreta em pelo menos uma oportunidade, quando, em 1965, os pianistas Muhal Richard Abrams e Jodie Christian, o baterista Steve McCall e o compositor Phil Cohran resolveram criar, com sede em Chicago, a "Association for the Advancement of creative Musicians (AACM)", uma organização sem fins lucrativos voltada para, conforme assim era descrito em seu instrumento constitutivo, "nurturing, performing, and recording serious, orginal music" ("alimentar, tocar e gravar música séria e original", em uma tradução livre). Em outras palavras, encorajava músicos, compositores e educadores ao comprometimento com a verdadeira "Grande Música Negra".
Desta sociedade, um grupo de artistas ganharia enorme atenção pela seriedade de seu propósito em resgatar, através de inovações, a música negra em sua essência. Integrada por Lester Bowie; Roscoe Mitchell; Joseph Jarman; Famoudou Don Moye; e Anlachi Favors, surgia a Art Ensemble of Chicago. Do grupo, que também terá futuramente espaço no blog, desde já indico o album que serve de trilha sonora para filme francês homônimo, Les Stances a Sophie.
Chamando ao blog a autoridade do mais renomado historiador do século passado, e hábil escritor de Jazz, Eric Hobsbawm, registro aqui citação de sua obra "História Social do Jazz", onde lembra o escritor que o avant-garde teria tido fontes tão diversas que muitas vezes seu elemento comum é menos musical que político, assim ponderando que, "Ao mesmo tempo - e paradoxalmente também - a nova vanguarda que rompeu com a tradição do jazz estava extremamente ansiosa para reforçar as suas ligações com aquela tradição, mesmo com relação a aspectos até então muito pouco notados (...). A reafirmação de tradição era política, mais do que musical. Pois - e esse é o terceiro aspecto do paradoxo - o jazz de vanguarda dos anos 60 era consciente e politicamente negro, como nenhuma outra geração de músico de jazz o tinha sido (...). A conscientização política continuou a manter uma ligação entre o avant-garde e a massa de negros americanos e suas tradições, criando portanto uma possibilidade de retorno à corrente principal do Jazz. A curto prazo, porém, ela deve ter tornado o isolamento dessa vanguarda do público de jazz que não a compreendia especialmente frustrante."
Dentre os aspectos musciais do vanguardismo, vale destacar uma característica que poderá possivelmente ser sentida pelo ouvinte já nas primeiras audições do álbum: a marcante influência européia e da música de outros continentes convivendo lado-a-lado com as raízes norteamericanas, em especial pela difusão do Jazz no velho continente, onda que ganhou força com o advento da Segunda Guerra Mundial, intensificando nas décadas seguintes o intercâmbio cultural que os músicos fatalmente experimentariam com o crescimento das apresentações internacionais, o que levou Hobsbawn, inclusive, a concluir que "Em outras palavras, o jazz se tornou menos americano do que antes".
Mas vamos ao disco, já que entender o vanguardismo no Jazz é missão impossível por meio de textos, senão pela audição de suas obras-primas, da qual o presente disco é referência!
Contextualizando-o, trata-se de gravação de 1956, um ano marcante para o Jazz, em especial também para outro de seus mais célebres compositores, o gênio da música moderna, Thelonious Monk, que na mesma ocasião gravou também uma de suas mais festejadas obras-primas, Brilliant Corners, um marco em sua carreira por lhe conferir o reconhecimento que a crítica até então relutava em dar-lhe. Além disto, é também o ano da já comentada no mês passado memorável apresentação de Duke Ellington no Newport Jazz Festival.
As sessões de gravação da obra contaram com os músicos Jackie McLean, no Saxofone Alto, J. R. Monterose, no Tenor, Mal Waldron, no piano, Willie Jones na bateria, além do próprio Mingus no baixo.
O ponto fraco a ser citado é que infelizmente não conta o álbum, mesmo nos dias de hoje, com uma remasterização à altura de sua importância, tendo baixo volume e pouca nitidez no som... Nada, porém, que comprometa a audição. Nas sessões de gravação ocorridas em Nova York nos estúdios da gravadora Atlantic foram registradas as seguintes quatro faixas, todas de autoria do próprio Mingus, exceto a segunda, "A Foggy Day", de George Gershwin:
1 - Pithecanthropus Erectus;
2 - A Foggy Day;
3 - Profile of Jackie;
4 - Love Chant;
Se o leitor ainda está se perguntando qual a razão do título da obra, o próprio Mingus assim dá uma idéia do que queria expressar nesta pequena descrição que acompanha o álbum: "Um poema tonal... minha concepção da contrapartida moderna do primeiro homem que ficou de pé - todo o seu orgulho considerando-se o primeiro a abandonar a postura de quatro patas, batendo com os punhos no peito e pegando sua superioridade". O tema, como se vê, é no mínimo curioso, mas nada raro para um artista da originalidade de Mingus. E, de fato, consegue o músico, com fidelidade, transmitir o motivo descrito na contra-capa. As explosões criadas pelos Sax's em crescendo, reforçadas pela entrada de cada instrumento, logo seguidas por novas passagens tranquilas que se contrapõem à selvagem excitação de suas sequências, marca autêntica do artista, refletem a grandeza e poder que o autor parecia tentar descrever. É possível, ainda, identificar na faixa os movimentos descritos por Roberto Muggiati em seu texto "viagem ao mundo de Mingus em 20 albuns", segundo o qual, "A composição basicamente se divide em quatro movimentos: evolução, complexo de superioridade, declínio e destruição". Valeregistrar que Pithecanthropus Erectus é tida hoje como referência dos primeiros anos do modalismo no Jazz, assunto que ficará para posts mais adiantes (http://www.youtube.com/watch?v=TkcHSgfDdkI).
A faixa seguinte "A Foggy Day" (http://www.youtube.com/watch?v=aPlDPnT41P4), como dito acima, é a única não composta pelo próprio Baixista, mas sim, trata-se de composição de George Gershwin para o filme "A Damsel in Distress", com letras de sua esposa, Ira Gershwin. A canção originalmente se chamava "A Foggy Day (In London Town)", tendo sido regravada por inúmeros artistas, de Billie Holliday e Ella Fitzgerald a Sarah Vaughan e Wynton Marsalis, se propondo a citar uma típica cena urbana de Londres. A versão de Mingus, entretanto, homenagea o trânsito de San Francisco, como o próprio músico posteriormente declarou. Mais uma vez, Mingus transmite com realismo a idéia central da canção, sendo possível vivenciar de perto os barulhos do trânsito reproduzido pelos instrumentos, sempre sob a competente levada rítimica sustentada pelo baixo.
Em "Profile of Jackie", bela balada que chama ao centro das atenções o saxofonista alto Jackie McLean, mostra o artista seu lado lírico, ao mesmo tempo em que desfila suas habilidades como instrumentista em uma complexa linha de baixo que preenche em todo o tempo os pouco mais de três minutos da canção.
Por fim o album é concluído com sua mais longa e experimental canção, "Love Chant" (http://www.youtube.com/watch?v=kWy86zYGCZQ), mais uma incursão pela música modal, imersa no mais autêntico blues!
Nat Hentoff, importante crítico da Downbeat Magazine, assim descrevia o artista: "Charles Mingus tinha o que Gerge Bernard Shaw chamava 'a força vital'. E aquele espírito era forte e insistente demais para ser contido pela mortalidade". E de fato o tinha... O disco ora revisado reflete exatamente a vivacidade do músico, que exprime em suas músicas sentimentos que refletem as grandes contradições humanas que Mingus trazia dentro de si!
Não posso concluir o presente post sem, como de costume, indicar outras obras do artista, em especial, o mais celebrado de seus álbuns, Mingus Ah Um, lançado em 1959 pela Columbia, que certamente também estará presente em ocasião breve neste Blog, já que considerado uma das maiores obras primas de toda a história do Jazz! Além deste, embora pudesse recomendar qualquer outro de sua discografia, deixo aqui sugestões para que o leitor busque os The Black Saint and The Sinner Lady, Blues And Roots, East Coasting e o ao vivo Mingus At The Bohemia, onde se pode ouvir belíssima versão do clássico All The Things You Are.
Até a próxima!
Venâncio
